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A intersecção das lutas contra as desigualdades

Postado às 05h14 | 18 Fev 2019

João Paulo Jales dos Santos. Estudante do curso de Ciências Sociais da UERN.

Desigualdades, assim mesmo, no plural. Desigualdades, porque a desigualdade, no singular, na verdade, é composta por entrecruzamentos de elementos que são interseccionais. Numa sociedade tão desigual como a brasileira, não há como estudar classe, sem levar em conta a variável de raça. Classe e raça no Brasil, assim como em outros países do mundo de populações étnico-raciais diversas, estão intrinsicamente ligadas. O racismo estrutural é sistêmico, penetra todas as instancias e instituições.

A luta antirracista, ao dialogar com outros campos e variáveis de estudos, intersecciona o racismo, e faz da raça, um componente fundamental para se compreender a sistemática racista. As cotas raciais, conquista de lutas do movimento negro, que trata concretamente de dar oportunidades a um povo historicamente oprimido, busca tratar com uma mínima igualdade possível, um povo que ao longo da história, ergueu sociedades sob a égide da escravidão, mas que teve negada sua participação cidadã nas próprias sociedades que ergueram às custas de suas dores e sofrimentos humanos.

Seja no Brasil, nos Estados Unidos, e em outros tantos países com histórico escravocrata, os negros enriqueceram senhores, enriqueceram aristocracias, contribuíram com seus trabalhos para a riqueza de nações, impactando culturalmente essas sociedades, mas que mesmo com o fim da escravidão, passados mais de 100 anos, ainda são oprimidos sistematicamente, e continuam a terem seus direitos civis cotidianamente negados.

Ao buscar tratar de forma desigual, desiguais, as cotas raciais, e outras legislações que visam dar oportunidades efetivas para grupos que historicamente foram perseguidos e oprimidos, visam igualar estruturas e instituições que negam oportunizar melhoria de vida e mobilidade social para grupos que no nascedouro da opressão, foram renegados a uma condição subalterna servil, negando assim, a própria humanidade desses grupos.

A meritocracia, ocorre quando indivíduos concorrem entre si em condições justas e igualais, na prática, a meritocracia se torna uma utopia. Como pedir meritocracia para sociedades marcadas pela escravidão, aonde os negros já do ponto de partida, tinham condições bastante desiguais das dos brancos? Ao afirmar que políticas de ações afirmativas ferem os preceitos de igualdade jurídica, os defensores da meritocracia acabam por sustentarem, sabidamente ou não, a manutenção do status quo que reserva a populações estigmatizadas e discriminadas, espaços mínimos e/ou marginais de acesso a cargos, instituições e funções que historicamente são ocupadas por homens brancos héteros cis-normativos.

Não reconhecer e apoiar as políticas de ações afirmativas como instrumentos essenciais para nivelar desigualdades estruturantes, é buscar manter a exclusão de grupos e povos que são vitimas contumazes de preconceito e discriminação, negando-lhes cidadania plena.

As mulheres transsexuais, que no Brasil tem uma média de idade de apenas 35 anos, bem abaixo da média de expectativa de vida da população geral, acabam indo para a prostituição porque seus corpos e suas identidades de gênero são marcadores sociais desviantes que ferem a binaridade heterossexual. Ao negar as mulheres transexuais melhores condições de trabalho, nega-lhes por conseguinte, garantia de mobilidade social.

Buscar, efetivamente, condições que oportunizem trabalhos dignificantes para mulheres trans, passa por uma perspectiva de compreender que o gênero e a identidade transexual, é uma intersecção de desigualdades, que relega aos transexuais, tanto femininos quanto masculinos, a condição humana que lhes são negados os próprios diretos humanos universais.

Retratar as dificuldades das mulheres que ao engravidarem encontram ainda mais entraves para ascender em suas carreiras profissionais, significa compreender que para o patriarcado, a gravidez da mulher, é uma forma de prendê-la eficazmente, nas amarras opressivas, ao controlar seus corpos e as todas as instancias de suas vidas, submetendo-as a dependência financeira do homem ao cercear sua oportunidade laboral.

A emancipação da mulher, de sua sexualidade, de seu corpo, constitui uma afronta ao pensamento heterossexista. A política de negação do aborto e dos direitos de reprodução contraceptivos das mulheres, nada mais é que o controle que o patriarcado exerce sob seus corpos e direito de escolha consciente.

O julgamento da criminalização da homofobia no STF, constitui o acesso a uma instancia possível de visar garantir direitos para a população LGBTQ, no país que mais mata pessoas LGBTQs no mundo. Quem hoje reclama de que o STF interfere no direito do legislativo de legislar, são os mesmos que que nunca questionaram quando o STF lhes acatou uma decisão que ao não conseguirem no legislativo, recorreram para obter ganho junto ao Supremo Tribunal Federal.

O julgamento da criminalização da homofobia pelo STF, encontra paralelos com o caso ‘Roe vs Wade’, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu pela legalização do aborto em todo território americano. Em ‘Roe vs Wade’, as proponentes do processo, recorreram a uma instituição amparada pela constituição americana, a Suprema Corte, para pedir a garantia do aborto, um direito que a Corte julgou embasado dentro dos preceitos jurídico-constitucional.

Interseccionalizar a desigualdade, a entrecruzando com diferentes e variadas analises e objetos de investigação de estudo, significa ter um olhar amplo e sistêmico de como atua a desigualdade em suas mais variadas vertentes. ‘Mulheres, Raça e Classe’, livro emblemático de autoria de Angela Davis, tendo sido publicado no inicio dos anos 80, constitui um profundo e imprescindível estudo de como a intersecção é fundamental para se entender e elevar a compreensão e evidência da atuação da opressão em suas mais variadas formas.

O progressismo, a partir do instante histórico que se desvinculou dos movimentos de massas, fez com que as lutas sociais contra as estruturas opressivas ganhassem contornos individuais em detrimento de direitos coletivos, os direitos identificados com o inicio das lutas sociais anti-opressão. Essa ruptura de perspectiva de luta, fez com que o progressismo, identificado em seus primórdios com os direitos coletivos de esquerda, se tornasse um progressismo de viés de conquista de direitos individuais, identificando-se com um progressismo de cunho liberal-burguês.

Disso advém, em boa medida, a própria crise dos movimentos progressistas, que se tornaram aburguesados, quando comparados aos primeiros movimentos de massas que faziam a intersecção coletiva da destruição das opressões sofridas pelas minorias.

Os panteras negras, movimento de massa das lutas antirracistas nos Estados Unidos, eram intimamente vinculados ao comunismo, condicionando o fim da opressão do negro na sociedade americana, ao fim do capitalismo. Os panteras negras que militavam com essa consciência nos anos 50, 60 e 70, hoje, certamente, não reconhecem nos atuais movimentos progressistas, a identidade inerente ao início dos movimentos progressistas esquerdistas daqueles tempos.

Ao tratar como ‘pauta de costumes’, como ‘guerras culturais’, lutas que tem como finalidade emancipar e conferir reconhecimento de humanidade a povos e populações que vivem há séculos sob a égide institucional, estrutural e imaginaria coletiva da opressão, os reacionários mostram que a pregação em torno da “liberdade de expressão”, busca tão somente fazer uso artificialmente de um direito para sumariamente continuar submetendo minorias sociais a violências físicas, psicológicas e morais.

As transformações sociais advindas das lutas de ativistas, militantes e políticos, vieram da luta por reconhecimento de direitos jurídicos, que não se esgotam em si, vide que um direito conquistado, não necessariamente, como até hoje a história evidencia, significa uma emancipação em termos concretos.

A expressão politicamente correto, usada por reacionários para denegrir aqueles comprometidos com o ideal anti-desigualdades, nada mais é, em seu sentido nascente, que uma gíria jocosa usada entre acadêmicos para ‘tirar onda’ entre si mesmos.

Reverter o significado dessa expressão, é conferir mau-caratismo a quem propriamente faz uso errôneo do termo. Disso, não surpreende que quem está vinculado por enxergar subalternamente quem não se encaixa no ordenamento homem-branco-cristão-hétero normativo, queira interromper os avanços emancipatórios e libertários.

Racializar somente sujeitos não-brancos, enxergando a branquitude como uma noção universal, sem questionar seus privilégios, é compromisso de todos, e não apenas de quem é de esquerda. A luta contra as desigualdades, que incomoda por mexer no âmago de feridas profundas e não curadas, deve ser um pacto público civilizatório que busque alcançar se viver em tempos e sociedades onde marcadores sociais da diferença não signifiquem supressões de vidas, direitos e de uma humanidade plena em suas possibilidades de existência.

Que as diferenças sociais que nos tornam tão humanos, mas também tão desiguais, possam ser encaradas, superadas e ressignificadas.

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