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Caipirinha foi criada como remédio para gripe espanhola, mas não funcionou, conta livro

Postado às 06h59 | 17 Out 2020

O Globo

Um homem “em estado gravíssimo” é atendido por médicos, sentado numa viela do Morro do Salgueiro, na Tijuca, informa a legenda da fotografia. Cento e dois anos depois, a cena se repete na mesma Tijuca, desta vez numa UPA, numa cena registrada por jornais. O homem da UPA morreu sentado, de Covid-19. Do homem do Salgueiro, vítima da pandemia de gripe espanhola (1918-19), não se sabe o destino. Sua história foi apagada, esquecida, como de resto a do Brasil daquele tempo.

Essa história e os motivos de seu esquecimento nas décadas seguintes são recuperados em “A bailarina da morte — A gripe espanhola no Brasil”, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, livro recém-lançado pela Companhia das Letras, e o primeiro a abordar o assunto com uma visão geral do país. A dupla autora de “Brasil, uma biografia” decidiu em março, quando a Covid-19 começava a se alastrar pelo país, pesquisar a pandemia de gripe, que acabou conhecida pela alcunha de espanhola e devastou o mundo no momento em que ele emergia arrasado da Primeira Guerra.

Lorotas da gripe espanhola

  • Canja de galinha. Entre as heranças da gripe espanhola estão a popularização da canja de galinha como remédio, no Rio de Janeiro. Não curou ninguém, mas entrou no imaginário como comida para tratar doentes.

  • Caipirinha. Dos muitos remédios improvisados para tempos desesperados surgiu em São Paulo, e se espalhou pelo país, a mistura de aguardente, limão e mel. Nascia a caipirinha. Era para tratar o corpo. Não funcionou. Ficou para alegrar o espírito.

  • Doenças inventadas. Para driblar as estatísticas da espanhola, cujo número de mortos não parava de crescer, autoridades inventaram doenças, numa tentativa de diluir os casos e mostrar que não havia uma pandemia. Surgiram óbitos por outras formas de gripes que não existiam, como a “gripe intestinal”. A doença inventada mais original coube a Recife, onde surgiu uma “tanatomorbia”, que significa literalmente “doença que mata”. O jornal “A Província” alertou , em 25 de outubro de 1918: “A tanatomorbia: Não tenha medo o leitor. (...) É uma invenção nossa, pernambucana, legítima, da nossa indústria médica”.

Surgida nos EUA

De espanhola, na verdade, essa gripe pouco tinha. A Espanha foi apenas o primeiro país que não censurou os casos da epidemia que matava mais do que a guerra. Calcula-se que cerca de 50 milhões de pessoas no mundo morreram com a doença, que hoje se sabe ter sido causada pelo vírus influenza H1N1, agora menos letal e prevenível por vacina. No Brasil, ela fez entre 35 mil e 50 mil vítimas, porém, não há registros exatos.

— Houve dificuldade e incapacidade reais em registrar e tentativas de ocultar e maquiar. Mas hoje há uma má intenção maior — afirma a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

Estudos indicam que a espanhola se espalhou a partir dos EUA. Mas essa é outra história, e a pesquisa de Schwarcz e Starling busca preencher um vazio específico. Ela ilumina o limbo a que foi relegado esse período. Schwarcz conta que foi um desafio escrever um livro a quatro mãos sem se encontrar presencialmente nem uma só vez. Mas, quando a pandemia de Covid-19 estourou, ambas viram que não havia quase nada sobre a última grande pandemia no Brasil, de forma geral. Era uma necessidade descobrir o que havia ocorrido, observa a também historiadora Heloisa Starling.

As pandemias que se alastram pelo contato interpessoal demonstram, em tragédias, que a história se repete. Gripe vem do francês gripper, que significa parar de funcionar. E foi isso que a espanhola fez há pouco mais de um século. Pessoas e países pararam. Em 2020, a história se repetiu com outro vírus respiratório, o coronavírus.

No Brasil, a bailarina — outro nome dado à gripe, “que dançava e se disseminava em larga escala” — fez o que quis. Seguiu seu curso natural até se cansar e apagar em 1919, após uma segunda onda que, no país, evidencia o livro, foi muito mais letal do que a primeira. Starling diz que até hoje não se sabe o motivo. Algo, talvez para sempre misterioso, aconteceu com o vírus.

E, agora, com a Covid-19, o Brasil se vê às voltas com o outro vírus bailarino, o Sars-CoV-2. A exemplo da gripe, segue livre em seu curso natural, e ainda não se sabe quando vai se cansar.

Riscos minimizados

“A bailarina da morte” mostra um Brasil em que governantes de todas as esferas de poder primeiro negaram, e depois, quando a situação piorou, minimizaram os riscos. Informações eram omitidas, outras doenças inventadas, casos não notificados. As falsas curas, remédios sem fundamento, proliferaram. Um deles, a cloroquina, foi ressuscitado pela Covid-19, mas já fazia gente adoecer de efeitos colaterais quando usado contra a espanhola, igualmente sem eficácia, lembra o livro.

Lilia Schwarcz destaca que epidemias são fenômenos sociais e culturais. E que nossa sociedade é despreparada para lidar com doenças, quanto mais doenças coletivas. Quando a nação adoece, a primeira reação é negar, dizer que não existe. Isso aconteceu há 102 anos e acontece hoje. Também se produzem bodes expiatórios. Em 1918, a Espanha. Em 2020, a China. E a pressão da economia é a mesma. Todo esse filme já foi visto, diz Schwarcz.

Starling afirma que repetimos na Covid-19 os mesmos erros porque apagamos da memória a gripe espanhola:

— E não aprendemos com ela. Só não teremos outras pandemias se aprendermos. E acho que na Covid-19 acontece algo pior do que repetir.

A pandemia foi apagada, salientam as historiadoras, a despeito das cenas de horror que produziu. Mortos empilhados nas ruas e crianças órfãs e famintas, achadas em agonia junto aos corpos dos pais. O livro recupera, por exemplo, anúncios em jornais oferecendo crianças abandonadas para adoção.

O coronavírus asfixia e mata sem desfigurar, e a espanhola espalhou pelo Brasil uma morte terrível e rápida. As pessoas sangravam pelo nariz, morriam asfixiadas, com a pele totalmente roxa, em poucas horas. Tudo isso, de alguma forma, o país se esqueceu de lembrar.

'Um vírus não cria nada, mas revela tudo’

Teses e dissertações acadêmicas ajudaram as autoras a traçar o primeiro panorama amplo do Brasil nos tempos da gripe, estabelecendo relações com a Covid-19, outra pandemia que também serve para "escancarar desigualdades". Leia abaixo entrevista com Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling.

Apesar das dificuldades do isolamento, vocês dizem que tiveram vantagens ao fazer a pesquisa. Quais?

Lilia Schwarcz: Dissertações e teses sobre a epidemia em cidades brasileiras nos ajudaram muitíssimo. Essa produção acadêmica excepcional permitiu que fizéssemos uma viagem pelo Brasil no tempo da gripe da espanhola. É esse olhar por todo o país que o nosso livro tem de diferente.

Heloisa Starling: Muitos pesquisadores nos ajudaram, a Biblioteca Nacional também foi muito importante. Mas dissertações e teses iluminaram nosso trabalho. Elas mostram a extrema relevância das universidades na geração do conhecimento. O trabalho das universidades é lindo.

Outras doenças inspiraram vasta produção artística, especialmente literária. Por que a gripe espanhola foi quase ignorada?

Schwarcz: A cultura ficou com medo da espanhola. Só os jornais não silenciaram em relação à gripe. Os repórteres entravam nos hospitais, iam aos cemitérios, eles mostravam o que realmente acontecia.

Starling: Ela foi ignorada no Brasil e no mundo. Há uma literatura imensa sobre as pestes anteriores à gripe espanhola. Mas não existe quase nada sobre ela. Isso é um sintoma do esquecimento coletivo. No Brasil, existe uma exceção, em que ela é protagonista. É a novela “O mez da grippe e outros livros”, de Valêncio Xavier, de 1976.

Por que 102 anos após a gripe espanhola cometemos na Covid-19 os mesmos erros?

Starling: Repetimos porque apagamos da memória a gripe espanhola. Ela foi esquecida. Não aprendemos com ela. E só não teremos outras pandemias se aprendermos. E acho que na Covid-19, acontece algo pior do que repetir.

Por que pior?

Schwarcz: A ciência e a tecnologia avançaram, mas nós regredimos como sociedade e governo. Tivemos os grandes sanitaristas, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e tantos outros. Deveríamos ter produzido um exército de médicos e sanitaristas, e produzimos esquecimento.

Starling: Porque degradamos comportamentos. Pior do que repetir é degradar. O governo da Bahia, por exemplo, tentou negar a epidemia da espanhola. Mas depois reconheceu e recorreu à ciência. Na época existia um senso de pertencimento social que não temos mais.

E por que esquecemos a gripe espanhola?

Schwarcz: A minha hipótese é que a Primeira Guerra intensificou o medo da morte. Houve um sequestro da morte. E éramos e continuamos a ser uma sociedade que não reconhece erros e dificuldades e, por isso, não aprende.

O que nos falta como sociedade hoje em relação ao Brasil da espanhola?

Starling: Perdemos o pertencimento social e a referência do outro. Muita gente só pensa em si e na sua carteira. Um exemplo é o uso de máscara, que muitos não fazem porque não se importam em proteger os outros. Perdemos valores civilizatórios, não reconhecemos que cada vida vale igualmente. Isso não é sociedade. É um aglomerado de indivíduos vorazes, violentos e egoístas.

Negros e pobres são de novo as maiores vítimas. A desigualdade é outro dos paralelos?

Schwarcz: Doenças escancaram desigualdades. Os vírus da gripe e da Covid-19 nos esfregaram isso na cara. O rosto da espanhola é pobre e negro. A história é a mesma. O índice de mortalidade é um nos hospitais- boutiques e outro bem maior nas superlotadas emergências do SUS.

Starling: Um vírus não cria nada, mas revela tudo. Vemos claramente o peso da desigualdade e como ela agravou as pandemias. Ou cai a ficha da sociedade e ela defende o SUS, ou se arrisca a perpetuar as pandemias.

A brutalidade da Covid-19 na Amazônia foi vista como inesperada, mas o livro revela que a história se repetiu.

Starling: Isso tem a ver com a falta de preparo, de infraestrutura. A doença chega pelos rios e se espalha depressa. A história da espanhola foi apagada e mais uma vez uma epidemia se alastrou.

No livro vocês falam de um mal que também nos acomete agora, o das subnotificações. Quantas pessoas de fato morreram no Brasil de gripe espanhola?

Schwarcz: O número de mortos, algo entre 30 mil e 50 mil, é uma estimativa grosseira. Houve dificuldade e incapacidade reais em registrar e tentativas de ocultar e maquiar. Mas hoje há uma má intenção maior.

Starling: Nunca saberemos de fato. Em parte porque a gripe passou a ser de notificação obrigatória justamente depois da pandemia. Mas também não saberemos porque governos não queriam, porque maquiaram os números, a exemplo do que tentaram fazer agora. Recife, por exemplo, inventou uma doença, a tanatomorbia, para esconder a gripe. Além disso, como agora, muita gente morreu em casa. Os indigentes não eram nem notificados e houve casos de quatro pessoas enterradas numa mesma cova. Isso deixa uma dívida enorme com esses mortos.

O Brasil da espanhola confiava mais na ciência do que o Brasil da Covid-19. Por quê?

Starling: Em 1918-19 havia sim mais confiança na ciência do que agora. É muito impressionante. Hoje, uma parte da sociedade foi convencida a negar a ciência. Mas mesmo a ciência sozinha não vai nos proteger, se não houver solidariedade. Há bons exemplos em alguns prefeitos e governadores na atual pandemia, bem-sucedidos em reduzir casos. A eleição do mês que vem vai nos mostrar um pouco como a população avalia o desempenho dos políticos frente à pandemia.

O quinino e o cloroquinino, antepassados da cloroquina, foram difundidos por autoridades em 1918-1919 como droga contra a espanhola, que jamais funcionou. Na Covid-19 aconteceu a mesma coisa com a cloroquina.

Starling: É assustador o uso político da cloroquina. Ficamos muito alarmadas com essa descoberta porque mostra claramente que continuam a insistir em vender gato por lebre. Mas agora é ainda mais grave porque governadores e prefeitos não fizeram isso. Foi o próprio presidente Jair Bolsonaro. De novo, isso é sinal de nossa degradação social, de nosso projeto de país. O Brasil de hoje espantaria os governadores do passado.

Há mais de um século o médico Miguel Pereira disse que o Brasil era um imenso hospital. Somos um dos países mais atingidos pela Covid-19. Quando deixaremos de ser um hospital?

Starling: Quando deixarmos de ser uma sociedade desigual. Médicos fundamentais como Miguel Pereira e Artur Neiva diagnosticaram no início do século XX que o problema é a pobreza. O SUS, o nosso maior avanço para dar acesso à prevenção e ao tratamento, é só de 1988. Há um atraso imenso que a Covid-19 só realçou.

O que a gripe espanhola pode nos ensinar em tempos de Covid-19?

Schwarcz: Não teremos um novo normal, e sim o normal de sempre, com suas desigualdades, se não aprendermos com o passado.

Starling: Que é muito perigoso esquecer. Melhor aprender com a memória e o conhecimento, como nos disse Camus. Para isso servem os historiadores, para mostrar como problemas foram enfrentados. E é por isso que dedicamos o livro aos netos da Lilia e aos meus sobrinhos, as novas gerações.

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