Postado às 06h19 | 07 Jul 2025
Comissão de Juízes Anônimo: Inovação ou Perigo à Transparência do Processo Judicial?
Raimundo Mendes Alves-Advogado
Colaborador
Resumo:
Este texto não busca provocar controvérsias, mas apresenta uma análise preliminar sobre a recente inovação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina para a formação de uma comissão de juízes anônimos, o que está gerando acirrado debate jurídico e institucional.
Embora essa proposta possa ser vista como um esforço para proteger a autonomia dos juízes contrapressões externas e supostas ameaças ao magistrado e seus familiares, surgem questionamentos sérios sobre sua conformidade com os princípios constitucionais fundamentais da publicidade, do juiz natural, da ampla defesa e da responsabilidade funcional.
Nosso estudo examina a validade dessa inovação à luz da Constituição Federal, enfatizando as implicações práticas do anonimato judicial, como a inviabilidade de contestar a incompetência, a parcialidade ou o impedimento, afetando gravemente o direito ao devido processo legal.
1 – Introdução:
No contexto de mudanças significativas nas instituições e nas tecnologias do Judiciário, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) apresentou recentemente uma iniciativa inovadora: a formação de uma comissão composta por juízes anônimos, com o objetivo de garantir maior imparcialidade e proteger os magistrados de pressões indevidas. No entanto, essa proposta gerou estranheza e inquietação entre os profissionais do Direito.
Como advogado e operador do direito há mais de 35 anos, faço uma avaliação da adequação dessa iniciativa em relação aos princípios fundamentais do processo judicial no Brasil, principalmente no que se refere à legitimidade processual, ao direito ao juiz natural e à transparência institucional, abordando as consequências práticas da impossibilidade de identificar o julgador.
2 – Fundamentos Constitucionais da Jurisdição: Transparência e Juiz Natural
A Constituição Brasileira de 1988 estabelece um conjunto de princípios que estruturam o processo judicial, entre os quais se destacam:
- A publicidade dos atos judiciais (art. 5º, LX);
- A fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX);
- O direito ao juiz natural e a proibição de tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII e LIII);
- O direito à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, LV).
Essas garantias não são meramente formais; funcionam como mecanismos de controle da legalidade, imparcialidade e legitimidade das decisões judiciais. Nesse sentido, a identificação do juiz é um pré-requisito fundamental para o pleno exercício dos direitos das partes, incluindo a capacidade de questionar a incompetência, a suspeição ou o impedimento do magistrado – ferramentas essenciais para assegurar um julgamento justo.
3 – O Juiz Anônimo e a Supressão do Direito de Defesa
A proposta do TJ-SC, que visa tornar anônimos os juízes que proferem certas decisões ou que integram comissões, restringe severamente a possibilidade de plena defesa das partes envolvidas. A razão é clara: como será possível a parte processada contestar a imparcialidade ou a competência de um juiz cuja identidade sequer é conhecida?
A legislação processual é explícita ao admitir a possibilidade de questionamento da incompetência, seja relativa ou absoluta, conforme os artigos 64 e seguintes do Código de Processo Civil. Também trata da suspeição ou do impedimento do juiz, conforme os artigos 144 e 145 do mesmo código, atuando como garantias da imparcialidade na justiça. O conceito de “juiz natural” envolve a definição prévia e o conhecimento da competência jurisdicional, assim como a identificação do magistrado.
Dessa forma, a anonimização atinge o núcleo do princípio do devido processo legal, pois transforma a prática da jurisdição em uma ação sem identidade funcional. Ainda que a decisão tenha base fundamentada, a falta de identificação do agente público impede a responsabilização e o controle social sobre a atividade judicial.
4 – O Tribunal de Justiça Pode Estabelecer Esse Modelo? Limitações da Autonomia Administrativa
Os tribunais brasileiros gozam de autonomia administrativa, conforme disposto no artigo 96, inciso I, da Constituição Federal, tendo a capacidade de regular aspectos internos de seu funcionamento. Entretanto, essa competência regulatória não pode anular as garantias constitucionais.
A criação de estruturas processuais ou metodológicas que alterem a forma como a jurisdição é exercida, especialmente em relação à formação dos órgãos julgadores e à transparência de suas atividades, requer respaldo legal específico e jamais pode infringir os princípios fundamentais do processo. Além disso, a possibilidade de anonimato no Judiciário extrapola a gestão interna e afeta as garantias dos envolvidos e dos cidadãos, sendo matéria reservada à legislação formal e à deliberação do Congresso Nacional.
5 – Riscos à Legitimidade Institucional do Judiciário
Pelo que está previsto na norma, a legitimidade do Judiciário depende substancialmente da confiança da população. A possibilidade de que decisões judiciais sejam tomadas por indivíduos anônimos, cuja identidade, formação, experiências passadas e vínculos institucionais não são conhecidas, enfraquece a percepção de justiça e pode levar a acusações de parcialidade estrutural ou de decisões políticas disfarçadas de técnicas.
Em uma era de crescente judicialização da política e dos conflitos sociais, a responsabilidade pessoal e funcional do juiz é uma proteção vital contra abusos. Eliminar essa responsabilidade, mesmo que de forma parcial, em nome da segurança ou da eficiência, representa um perigoso retrocesso institucional, com o qual não concordamos e que não encontra amparo na ordem constitucional vigente.
6 – Conclusões Finais
A formação de uma comissão composta por juízes anônimos, por mais que tenha boas intenções, desafia diretamente os princípios constitucionais da transparência, do juiz natural, do direito à ampla defesa e da fundamentação adequada das decisões judiciais.
Qualquer decisão judicial proferida sem a identificação do juiz impedirá que a parte alegue suspeição, incompetência ou qualquer tipo de vício de imparcialidade. Isso, por si só, infringe o conceito de um processo justo, tornando a jurisdição um exercício obscuro e imune ao controle das partes e da sociedade.
A proposta do TJ-SC, portanto, não encontra respaldo na Constituição Federal. Ainda que inovadora, revela-se inconstitucional. O aprimoramento das instituições do Judiciário deve ocorrer dentro dos limites legais e constitucionais, nunca em detrimento das garantias processuais dos cidadãos.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2023.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021