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Estados Unidos e Brasil num mesmo espelho

Postado às 05h35 | 09 Jan 2021

Bolívar Lamounier

A invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.

Muito pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país. Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar, os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do dia os defeitos do sistema.

Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.

Acontece que Goldwater, com todos os defeitos que se lhe possam atribuir, não ia além do conservadorismo sulista; não se apresentava como portador de uma ideologia sem pés nem cabeça, como a “supremacia branca” de Donald Trump. E era, digamos assim, um político normal, não um bilionário de Nova York. Por essas e outras razões, penso que as feridas abertas por Trump não cicatrizarão tão cedo.

O caso brasileiro é muito mais grave que o americano. No que toca ao curto prazo, não há muito a dizer. Temos na Presidência da República uma figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Trump. O Congresso tem se saído algo melhor que o esperado, mas o custo fiscal é elevado, como sempre foi. E o Judiciário (entenda-se o Supremo Tribunal Federal) parece cada vez mais empenhado em combater o combate à corrupção.

Numa perspectiva mais dilatada, o problema é que o sistema político brasileiro é incapaz de impulsionar o crescimento da economia e o aumento do bem-estar. Claro exemplo disso é o sistema de ensino. O atual governo já está em seu quarto ministro da Educação, e todos eles, como diriam os teatrólogos, passam pela cena sem dizer palavra.

O acoplamento do sistema presidencial a essa grande ameba partidária é, com certeza, a pior invenção política de que temos notícia nos tempos modernos. No sistema presidencial, o Executivo não dispõe de meios legítimos para forçar um Legislativo recalcitrante a aprovar reformas sabidamente necessárias; e o Legislativo, por sua vez, não tem como destituir um chefe de governo que careça da estatura exigida pelo cargo, a não ser pelo procedimento do impeachment, sabidamente complexo, demorado e perigoso. O impeachment não é sequer remotamente comparável, sob esse ponto de vista, ao voto de não confiança, próprio do sistema parlamentarista.

Tivéssemos cabeça, nós nos abalançaríamos a uma reforma política séria, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista de governo. Escusado frisar que o debate sobre sistemas de governo, sistemas eleitorais e demais peças político-institucionais não é monopólio de Brasília. Sendo, como são, reformas estruturantes, com impacto generalizado e duradouro sobre a sociedade, devem contar com toda contribuição relevante que o País possa mobilizar de fora para dentro, muito além da classe política.

Outra precaução importante é não repetirmos o erro de 1993, quando submetemos tais matérias a uma consulta popular plebiscitária. Cabe aqui o ensinamento do liberal gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil (presidencialista, por sinal). Destacando a superioridade da busca da racionalidade no sistema representativo “em sua elaboração completa” e a falta dela no “simples plebiscito”, ele esclarece que o sistema representativo combina a pressão popular com a possibilidade “da discussão metódica, necessária para o completo esclarecimento dos assuntos, para a possível modificação do próprio modo de propor o objeto a resolver, e até para acentuar a responsabilidade das opiniões e dos seus portadores”.

 

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