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OBAMA “Trump causou muitos estragos nos Estados Unidos e no resto do mundo”

Postado às 05h42 | 19 Nov 2020

El País

Em conversa com o diretor do EL PAÍS, o ex-presidente reflete sobre o momento atual e a pandemia, os quatro anos de Trump no poder, a polarização em seu país e também sobre o futuro com Biden no comando dos Estados Unidos. Sua conclusão é otimista, um otimismo “cauteloso”

Os Estados Unidos vivem dias estranhos. Os protocolos para a transferência ordenada do poder, tão venerados quanto a própria República norte-americana, estão agora em perigo por causa da recusa do atual ocupante da Casa Branca em reconhecer a derrota. Trata-se de um rito laico, uma liturgia democrática pela qual o perdedor não só admite sua derrota, mas que, ao aceitar a vitória de seu adversário, lhe dá a legitimidade para que prossiga, como em uma corrida de revezamento, a busca por aquela “união mais perfeita” que prescreve a Constituição. É também uma mensagem a todos os cidadãos, especialmente aos que estiveram no lado perdedor, de que chegou a hora de curar as feridas. No livro que acaba de publicar, Uma terra prometida (Companhia das Letras), o ex-presidente Barack Obama relembra como Bush e sua família oficiaram esse dever. “Prometi a mim mesmo”, escreve, “que quando chegasse o momento trataria meu sucessor da mesma maneira”. Seu sucessor foi Donald Trump. Então, em uma conversa que tivemos no domingo passado em Washington, perguntei-lhe se, de fato, assim o fez, com elegância.

—Sim, eu o fiz.

—Foi difícil?

—Um pouco... sim. [Obama não pode evitar um sorriso de cumplicidade neste momento]. Mas ainda assim telefonei para Donald Trump na noite de sua eleição para cumprimentá-lo, quando sua vantagem sobre Hillary Clinton era igual à vantagem de Joe Biden nesta eleição. Não adiei a ligação durante semanas nem fingi que não havia acontecido o que havia acontecido. Poucos dias depois, convidei Trump e Melania à Casa Branca. Pedi a todas as minhas equipes e departamentos que preparassem os manuais de transição. Mas parece que não os leram. Um deles tratava de como lidar com uma possível pandemia. Essa transferência pacífica de poder entre partidos é parte do que faz uma democracia funcionar.

—O que nos leva ao que está acontecendo agora. Não é que Trump não tenha convidado Joe Biden à Casa Branca, é que nem sequer reconheceu sua derrota. Você teria imaginado que algo assim poderia acontecer? No seu país?

—Nem teria imaginado isso quatro anos atrás. Fico triste em admitir, mas não me surpreende que Donald Trump esteja se comportando assim no final de sua presidência. Michelle e eu conversamos muito sobre isso, especialmente nas últimas quatro semanas. Ela é mais pessimista sobre a natureza humana. Mas eu tendo a ser mais otimista. E tento lembrá-la de que, quando nasci, em grande parte dos Estados Unidos, neste hotel, por exemplo, não havia clientes afro-americanos. Se o senhor e eu tivéssemos estado juntos, o mais provável é que eu tivesse carregado suas malas. Eu vi isso. E, no entanto, aqui está o senhor, sentado com um ex-presidente dos Estados Unidos. Por mais frustrantes e desanimadoras que possam ser às vezes as notícias, 59 anos na história da humanidade é um piscar de olhos. E isso é progresso. Também em outras partes do mundo. Quando nasci, a Espanha não era uma democracia e a Europa ainda estava se reconstruindo depois de uma guerra na qual morreram mais de 60 milhões de pessoas.

Um país dividido

O hotel em que estamos, o Fairmont, está localizado em Georgetown, um bairro da capital federal que abriga a universidade do mesmo nome. A manhã de sábado foi ensolarada e quente, um tempo excepcionalmente aconchegante para meados de novembro. Os estudantes lotavam as varandas de cafés e restaurantes, em ruas alinhadas por casinhas de tijolos à vista, numa atmosfera de serena tranquilidade. A poucos quilômetros, no entanto, tudo era gritaria. Milhares de apoiadores de Trump, vindos de todo o país (em Washington, 90% das pessoas votaram em Biden), ocuparam o enorme espaço público entre a Casa Branca e o Capitólio com cartazes denunciando uma fraude que só existe em suas cabeças e que antecipavam, de passagem, o apocalipse. Derrotado pelo sol, um idoso sentado na calçada segurava um cartaz que dizia: “Se Biden chegar à Casa Branca será o fim dos EUA”.

Toda essa crispação começou quatro anos atrás; ou talvez ainda antes. Depois de deixar a Casa Branca, Obama embarcou, junto com a esposa, para sua última viagem no Air Force One. “Rumo ao oeste”, sem especificar mais, escreve no livro, de mais de 700 páginas, o primeiro de dois, em que percorre sua improvável ascensão de obscuro legislador de Illinois ao Senado dos Estados Unidos; e a partir daí, quase ininterruptamente, a candidato à presidência pelo Partido Democrata, esperança de milhões de norte-americanos em uma mudança muito postergada e, finalmente, depois de uma explosão de júbilo como não se via havia décadas, ao Salão Oval. Naquele dia, a bordo do avião presidencial, porém, seu estado de ânimo era agridoce “devido aos resultados inesperados de uma eleição”, escreve ele, que levou ao poder “um sucessor com ideias diametralmente opostas às nossas”. O que veio depois não melhorou as coisas. Portanto, pergunto-lhe sobre seu estado de ânimo nesses quatro anos.

―Não há dúvida de que Trump fez muitos estragos nos Estados Unidos e no resto do mundo. Se a ciência é ignorada, se os dados são ignorados, a pandemia se agravará. Se há incentivo ou certa tolerância em relação a comportamentos racistas, aqueles que têm esses impulsos se sentirão mais motivados a exibi-los. Se os ditadores são recebidos de braços abertos, o compromisso com a democracia diminuirá. Nos últimos quatro anos houve momentos em que senti frustração, em parte porque meu primeiro mandato teve início em 2009, quando os Estados Unidos começavam a sofrer os efeitos de uma crise financeira global. Havia também a Guerra do Iraque [iniciada com Bush, seu antecessor], que dividiu a sociedade norte-americana e isolou muitos de nossos aliados. Durante oito anos trabalhamos muito duro para reconquistar a posição dos Estados Unidos no mundo e para recuperar a economia. Quando meu segundo mandato terminou, o país estava em uma posição forte. E depois você vê como todo esse progresso se dissipa sem nenhuma necessidade. Sim, às vezes é muito frustrante, sem dúvida.

―E agora, com a eleição de Biden?

―O que essas eleições mostraram é que a sociedade norte-americana está profundamente dividida. Algumas dessas divisões já estavam presentes antes da chegada de Donald Trump e continuarão aí quando ele for embora. Mas o que está claro é que Trump atiçou o fogo da divisão. Sei que Joe Biden, por instinto e por caráter, buscará reconectar o país porque é um unificador. Uma das coisas que aprendi como presidente é que o que o presidente diz e como diz importa, e muito. E embora um presidente não possa resolver todos os problemas, algo que as pessoas quase sempre esperam que faça, ele pode cultivar uma forma de interagir, de promover a civilidade e de incentivar a compreensão em relação aos outros. Na esfera internacional, pode tomar a iniciativa na hora de se relacionar com os países aliados e decidir como abordar a diplomacia. Acredito que com Biden assistiremos ao retorno de algumas das tradições que defendi como presidente.

―Em seu livro há uma alusão ao fato de que os cidadãos souberam ver o melhor do senhor, “uma voz que insistia que, apesar das diferenças, permaneceríamos unidos como um só povo e que, juntos, homens e mulheres encontraríamos um caminho para um futuro melhor”. Depois vieram os ataques que sofreu em seus oito anos na Casa Branca, a presidência de Trump e agora, embora Joe Biden já seja o presidente eleito, o país continua dividido, e uma parte está francamente exasperada. Vimos isso ontem mesmo aqui, nas ruas de Washington. Ainda mantém essa visão otimista?

―Sim. Sempre cultivei um otimismo cauteloso. A história nem sempre avança. Às vezes retrocede ou se move em outras direções. Não há dúvida de que a humanidade progrediu nos últimos dois milênios; há menos violência, mais educação e temos melhores níveis de saúde, mas ao mesmo tempo persistem a guerra e a crueldade. Existem lugares no mundo onde as pessoas não têm direitos. Vemos isso todos os dias. E o mesmo acontece nos Estados Unidos, um país que é melhor do que há 200 anos, mas onde continua existindo racismo e desigualdade. Quando era presidente, costumava me reunir com jovens e sempre me surpreendia com a convicção deles —maior que a de seus pais e avós— de que todos somos iguais, de que as pessoas devem ser julgadas por seu caráter e não pela cor de sua pele, por suas crenças religiosas, por seu sexo ou por sua orientação sexual. Eles acreditam em uma humanidade comum, que somos os guardiões deste planeta e que problemas como a mudança climática devem ser enfrentados. Mas ainda há muitos eleitores mais velhos que resistem a essas mudanças. Por outro lado, há o legado de instituições que, se não estão destruídas, estão deterioradas, razão pela qual o Governo e a democracia dos Estados Unidos não podem dar uma resposta rápida aos problemas. E quando os partidos estão tão polarizados, chega-se a um ponto-morto, a uma situação de obstrucionismo que alimenta o cinismo e desalenta as pessoas, por isso acredito que temos um caminho bastante difícil pela frente. Não podemos tomar a democracia como algo consolidado porque ela é, precisamente, a forma de Governo mais difícil, pois requer atenção constante de todos os cidadãos, cobrança de responsabilidades dos líderes e análise crítica do que se diz, do que é verdade e do que é mentira. E isso é mais difícil agora do que antes.

Alertas precoces

Isso é, efetivamente, mais difícil agora do que antes. A divisão na sociedade norte-americana de que Obama fala tem origem antiga, mas nos últimos anos, sem dúvida, se exacerbou até níveis inquietantes. Quando Trump chegou, os holofotes estavam prontos, a maquinaria azeitada. É interessante a forma com que Obama descreve o fenômeno de Sarah Palin, a colega de chapa de John McCain nas eleições de 2008. Palin tornou-se motivo de chacota nas elites liberais em ambas as costas por sua ignorância, seu desembaraço em lidar com essa ignorância e seu desprezo até então impensável por uma forma de fazer política. Obama intuiu —e temeu— outra coisa.

Seja porque percebeu isso claramente naquele momento ou porque, retrospectivamente, teve uma iluminação, Obama escreve que “Palin não se importava se o conselho editorial do The New York Times ou os ouvintes da rádio pública nacional questionavam suas capacidades. Ela oferecia essas críticas como prova de sua autenticidade, porque havia compreendido (muito antes que seus detratores) que os intermediadores estavam perdendo relevância; que tinham sido abertas as comportas do que era considerado aceitável em um candidato a um cargo nacional; e que a Fox News, o rádio e o incipiente poder das redes sociais poderiam prover-lhe todas as plataformas de que necessitava para atingir o público ao qual se dirigia”. O senhor está descrevendo, digo ao presidente, o arauto de Trump, oito anos antes de entrar em cena. Mas parece que ninguém prestou atenção. Quando o senhor percebeu esse risco?, pergunto. E o que acredita que poderia ter sido feito de maneira diferente?

―Nos EUA sempre se travou uma guerra de narrativas entre os documentos fundadores, que declaram que todos os homens foram criados iguais e que defendem o império da lei e da liberdade de expressão —todos esses princípios maravilhosos—, e a realidade do escravidão, a aniquilação das tribos nativas norte-americanas, a discriminação de diferentes grupos sociais. Assim, uma das narrativas preconiza a defesa dessas ideias, fazer com que mais gente participe delas, reduzir da influência da raça, tirar mais gente da pobreza e dar mais oportunidades aos trabalhadores e às pessoas que não têm propriedades. E ainda há a narrativa daqueles que se recusam a tudo isso para preservar os privilégios e o status de certos grupos de norte-americanos. Houve momentos em nossa história, e acredito que o fato de eu ter sido eleito presidente é um exemplo, em que a narrativa da inclusão prevaleceu e depois outros em que houve um retrocesso. Acredito que Sarah Palin foi um sintoma precoce do ressurgimento de uma contranarrativa que buscava retroceder e atacar tudo o que representava a minha reeleição e a aliança de eleitores que tinha me dado a vitória. Tive de lidar com o grau com que os meios de comunicação estavam dispostos a acreditar em Sarah Palin ou no Partido Republicano; e com o fato de que as críticas e sua resistência às minhas políticas eram alimentadas pelo desejo de voltar aos tempos em que não havia gente como eu no Salão Oval. Comentei antes que agora existe uma infinidade de meios de comunicação que impedem que muitos eleitores republicanos escutem algo que possa contradizer Donald Trump. Para eles, existe uma realidade como a que supostamente estamos vivendo agora, na qual Trump ainda não perdeu as eleições porque houve fraude e votos ilegais, e tudo apesar da ausência de provas. Como jornalista, verá que este não é um fenômeno exclusivamente norte-americano, é global. Um dos maiores desafios para nossas democracias passa por voltar aos tempos em que os fatos eram os mesmos para todos. É fundamental que possamos debater ideias e encontrar soluções para os problemas. Deveríamos poder estar de acordo que a mudança climática é real e que as estatísticas econômicas têm validade. Deveríamos estar de acordo que depois de uma eleição os votos são contados e quem ganhou, ganhou, e quem perdeu, perdeu. Tudo isso já podia ser visto com Sarah Palin, ganhou impulso durante minha presidência e nos últimos quatro anos ficou ainda pior.

―O livro é abundante nessa reflexão. Em uma passagem, afirma: “Não conseguia ver o quanto essa tecnologia se mostraria maleável e como um dia as mesmas ferramentas que me levaram à Casa Branca seriam usadas contra tudo o que havia defendido”. Quando percebeu esses riscos? Existe algo que gostaria de ter dito ou feito durante seu mandato para evitar que as redes sociais acabassem rompendo o tecido das sociedades modernas como estão fazendo?

―A tecnologia é um exemplo de como as coisas mudam rapidamente. O iPhone só chegou ao mercado em 2007, há pouco mais de 10 anos. No princípio pensamos que [as redes sociais] só trariam coisas boas, mas aí começamos a ver seu lado sombrio. Durante a Primavera Árabe, as pessoas se reuniam na Praça da Libertação via Facebook e Twitter para protestar contra a repressão do regime de Mubarak e pedir mais democracia, mas apenas alguns anos depois o Exército Islâmico começou a usar a mesma tecnologia para recrutar terroristas. De repente, você percebe que a ferramenta que as crianças de uma aldeia remota na África podem usar para acessar bibliotecas em todo o mundo é a mesma utilizada em Mianmar para promover a limpeza étnica e a opressão contra o povo rohingya. Devemos encontrar um equilíbrio, aproveitar a parte boa das redes sociais e reduzir seus efeitos adversos. Fazer isso nas democracias liberais é mais difícil porque defendemos a liberdade de expressão. Acredito que a resposta está em uma combinação entre legislação e práticas corporativas que ajudem a minimizar os danos. Mas também é preciso levar em conta outras coisas. Uma das coisas que aprendemos com Trump é que muitos dos valores que mantêm uma sociedade unida não estão codificados, não estão sujeitos a sanções penais; trata-se de expectativas, de valores que são transmitidos de uma geração a outra e de tradições que agora devemos reconstruir e ensinar aos nossos filhos. Michelle e eu conversamos muito sobre como criar um sistema educacional que promova o pensamento crítico das crianças e ensine que existem verdades objetivas e que certos valores do Iluminismo, como a lógica, a razão, os fatos, a objetividade e a confirmação de hipóteses contribuem para moldar a vida moderna. Acredito que tanto o senhor quanto eu crescemos acreditando que essas ideias eram inquestionáveis. Mas, em vista da situação, teremos que defendê-las o tempo todo porque, caso contrário, os velhos espíritos das idades obscuras voltarão para se impor novamente.

A herança

Em sua resenha de Uma terra prometida para o The New York Times, a proeminente escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie cunhou uma expressão que explicita a tendência de Obama —que ele mesmo reconhece em seu livro— de pensar muito nas coisas, ponderar o ponderável e o imponderável e acabar não tomando uma posição firme: “Fazer um Obama”. Tanto na escrita quanto na presidência. Para muitos progressistas, que Obama tenha feito um Obama em questões em que desejavam e esperavam pronunciamentos taxativos como o racismo, as desigualdades ou a política externa ou militar (o presidente manteve no cargo Robert Gates, o secretário de Defesa de George Bush) foi uma grande decepção.

O senhor concorreu à presidência, digo a Obama, com a ideia de mudança. Uma mudança substancial. Mas várias vezes em seu livro justifica por que essa mudança não podia ir mais longe do que propôs, aceitou ou legislou, tanto na reforma do sistema de saúde quanto em outros assuntos. Continua acreditando que tentou até o limite?, pergunto-lhe, que os Estados Unidos não teriam podido digerir mais mudanças? Nunca reconsiderou o assunto?

―Sempre se reconsideram as coisas. É normal que quando você termina algo pense que poderia ter feito mais. Por exemplo, graças à lei de saúde que aprovamos, 23 milhões de pessoas puderam pagar um seguro médico de que antes careciam. Ainda existem vários milhões de pessoas que não o têm. Teria preferido chegar a todos, claramente, mas estava limitado pelo número de votos de que dispunha. É o que acontece na política, pelo menos em uma democracia: não importam quais sejam suas aspirações ou quão corajosas sejam suas propostas, mais cedo ou mais tarde terá que enfrentar a matemática e o número de votos necessários para aprovar uma lei. Enquanto escrevia o livro, percebi que minhas propostas eram tão ousadas quanto eu queria e continuei pressionando até que chegou um momento em que tinha de tomar uma decisão: conformo-me com metade do que queria ou com nada? Na hora de discutir as decisões com minha equipe, a pergunta-chave era: isso vai melhorar o que já temos? Se a resposta for sim, vamos em frente. O melhor não pode ser inimigo do bom. Se eu tivesse que repetir, evitaria alguns dos erros que cometi ao transmitir minhas mensagens, ao descrever meus objetivos e ao vender nossas ideias. Provavelmente poliria essas mensagens, seria mais consciente dos perigos à espreita e teria tido mais cuidado...

―Não esperava a violenta reação que veio depois...

―Sempre considerei que haveria uma forte reação ao meu mandato. No livro explico que nossa chegada à Casa Branca nada teve a ver com a de Franklin Delano Roosevelt depois do mandato de Herbert Hoover. A Grande Depressão já durava três anos e todo mundo sabia quem era o culpado. Tivemos o azar de que, assim que entramos, as coisas ficaram muito feias. As pessoas não tinham muito claro quem era o culpado por tudo ter fracassado. Mas também fomos capazes de estancar a hemorragia e evitar que se chegasse aos níveis da Grande Depressão. Ainda assim, as pessoas perguntavam, com razão, por que tínhamos gasto todo esse dinheiro em programas de estímulo ou por que tínhamos resgatado os bancos. E como as coisas não ficaram muito ruins, entenderam por que demos alguns dos passos que demos. Por isso tinha claro que toda a alegria que minha eleição provocou não duraria para sempre. Não esperava que Trump fosse eleito. Mas que, se fosse eleito, seria para um único mandato. Nisso eu acertei.

 “SEMPRE CONSIDEREI QUE HAVERIA UMA FORTE REAÇÃO AO MEU MANDATO”

Nesse espírito de examinar e reexaminar tudo, inclusive seus motivos e impulsos, às vezes ocultos também para ele mesmo, Obama descreve no livro uma cena reveladora com a esposa, Michelle, que vinha resistindo à participação cada vez mais intensa do marido na política. Para ela, a candidatura à presidência era uma linha vermelha. Ambos estavam em uma sala com os colaboradores mais próximos. E ela espetou-lhe à queima-roupa: “Minha pergunta é: por que você, Barack? Por que você precisa ser o presidente?” Ele se perdeu em seus pensamentos. “Barack?”, insistiu ela. Obama esboçou algumas linhas de defesa, pensou novamente e disse: “Há uma coisa da qual não tenho dúvidas. Sei que no dia em que levantar a mão direita e jurar ser presidente dos Estados Unidos o mundo começará a olhar para este país de forma diferente. E sei que todas as crianças da América (crianças negras, hispânicas, crianças que não se enquadram) também se verão de uma forma diferente, seus horizontes se expandirão, suas possibilidades se ampliarão. Só por isso… vale a pena”.

A sala ficou em silêncio. Michelle ficou olhando um instante que para ele pareceu uma eternidade. E finalmente disse: “Essa resposta não foi nada ruim”. Obama pôde ver como os membros da equipe “conjuravam em seu interior o juramento do primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos”.

―Esse objetivo foi alcançado?

―Nunca pensei que só por ter sido eleito presidente eliminaria a discriminação nos Estados Unidos e que as crianças afro-americanas e latinas já não teriam que superar mais obstáculos do que os brancos para ter sucesso. Mas no que eu acreditava é que ver alguém como eu exercendo o trabalho mais importante do país, o líder do mundo livre, enviaria uma mensagem sutil, ou não tão sutil, às crianças sobre o que elas poderiam aspirar em suas vidas. E também acredito que minha presidência foi muito exitosa para muita gente porque mudou a forma como os meninos afro-americanos e latinos, mas também os brancos e as meninas, e qualquer pessoa que sentisse que não se encaixava, percebiam a si mesmos.

Embora seja mencionado apenas de passagem no livro, no domingo em Washington Obama explicou a seguinte história em detalhes. Trata-se de um menino que visitou o Salão Oval com os pais, que trabalhavam para o presidente. Quando chegou o momento da foto, o menino disse que tinha uma pergunta. Que pergunta?, interessou-se o presidente. E o menino, afro-americano, de uns quatro ou cinco anos, perguntou-lhe, apontando para os cabelos crespos do presidente, se seu cabelo era igual ao dele.

―E eu respondi: “Claro, por que não verifica você mesmo?” Agachei-me, ele tocou minha cabeça e Pete Souza, nosso fotógrafo, tirou uma foto, uma das minhas favoritas entre todas as tiradas no Salão Oval. Porque aquele menino pensou: está bem, esse homem importante é como eu. Anedotas como essa têm um impacto positivo na vida de crianças como ele. E na vida do país.

Os oito anos de Obama na Casa Branca

O momento não poderia ser mais interessante para entrevistar Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, Prêmio Nobel da Paz em 2009, “chefe” do próximo presidente dos EUA e uma das figuras políticas mais importantes deste século.

O encontro com Obama ocorreu no domingo, 15 de novembro, no Fairmont Hotel, em Washington, com o distanciamento social e as devidas medidas de segurança exigidas no momento atual. Estiveram presentes o diretor do EL PAÍS, Javier Moreno, e uma equipe de vídeo que veio de Madri e do México para capturar as imagens completas da única entrevista que Obama concedeu a um jornal do idioma espanhol desde a vitória de Joe Biden no último dia 4 de novembro.

Dentro do contexto da publicação do primeiro volume de suas memórias presidenciais, ele falou sobre o passado e muito sobre o presente e o futuro.

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